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A crise climática já está aqui. Nosso fracasso em enfrentá-la escancara a fragilidade da sociedade que construímos. Nosso modelo de desenvolvimento, de produção de alimentos e de energia, nossas formas de deslocamento e, sobretudo, nossa estratificação social, que concentra no topo as decisões sobre tudo isso, são a causa profunda de um problema desastroso, que estamos obrigados a enfrentar imediatamente.
A atmosfera terrestre atinge hoje a maior concentração de carbono dos últimos 800 mil anos. O resultado direto é a elevação de 1,09°C na temperatura média da Terra em comparação com o período pré-industrial. O alerta se acende para que façamos o que estiver ao nosso alcance para impedir o ponto crítico de 1,5°C. Passar daí implicará um cenário dramático de secas severas, colapso agrícola, extinção massiva de espécies, supertempestades, incêndios infernais, ondas de calor letais e cidades inteiras engolidas pela elevação do nível do mar. As projeções do sexto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o que há de mais confiável em informação científica, indicam que, se não tomarmos medidas contundentes agora, em apenas 20 anos chegaremos nesse ponto catastrófico de não retorno.
O Brasil é um país que foge da regra das termelétricas como a principal fonte poluidora. Aqui, a maior causa de emissões de gases estufa é o desmatamento. Tragicamente, o cenário de devastação dos biomas se agrava a cada ano. Segundo o último relatório do Mapbiomas, a devastação cresceu 14% no país em 2020. Praticamente todo o desmatamento registrado foi ilegal. Todos os biomas sofreram alta de desmatamento em comparação a 2019. O avanço criminoso sobre as florestas constitui também um cenário de violência contra os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que habitam esses territórios. Na contramão do mundo, que reduziu 7% das emissões de gases em 2020, o Brasil aumentou 9,5%, essencialmente por conta do desmatamento.
O governo Bolsonaro deu passe livre às atividades econômicas mais destruidoras e irresponsáveis. Mas o Brasil já foi referência mundial em discussão ecológica, e tradições militantes como a de Chico Mendes mostraram na prática que é possível articular luta de classes com proteção ambiental. Esse legado nos torna o país com maior potencial de entregar para o mundo um programa efetivo de descarbonização da economia, justiça ambiental e transição energética, que alinhe os interesses materiais da classe trabalhadora com o interesse geral da humanidade e as necessidades planetárias – talvez o único país com todas as ferramentas para colocar em prática um ousado plano social-ecológico que enfrente simultaneamente a fome, o desemprego e a catástrofe ambiental. Tanto mais trágico então que, nos últimos anos, sob a tragédia bolsonarista, estejamos andando para atrás, de costas para o futuro. O maior desafio da esquerda global no século XXI é articular a questão social com a ambiental. O Brasil pode mostrar o caminho.
O capitalismo é o problema, a classe trabalhadora é a solução
Sob condições capitalistas, a interação entre sociedade humana e o resto da natureza é regulada cegamente pelas leis econômicas da acumulação. Esse metabolismo se dá de forma não consciente, escapa à ação humana coletiva racional e é subordinado ao impulso do capital à reprodução expandida e descontrolada.
Mesmo os economistas mais apologéticos não podem deixar de reconhecer que a mão invisível (e inconsciente) do mercado produz não apenas coordenação, mas também externalidades negativas e subinvestimento em bens públicos. Não se trata de uma mera falha acidental, de fácil correção: o foco da empresa capitalista é aumentar o lucro, não satisfazer necessidades humanas. Deixada à sua própria natureza, fatalmente buscará empurrar os custos para o restante da sociedade, explorar predatoriamente recursos não precificados e deixar de produzir (ou mesmo destruir) aqueles valores de uso dos quais é difícil extrair retorno financeiro, mesmo quando são fundamentais para uma boa vida humana.
Sabemos que o ser humano é uma criatura natural: fazemos parte da natureza e estamos dentro dela. O animal humano não pode existir sem uma constante e adequada relação metabólica com o resto da natureza. Estamos emaranhados em uma rede de interdependência não apenas com os outros membros da nossa espécie, mas com milhões de outras espécies com as quais compartilhamos o planeta. Não há separação dualista entre o social e o natural. A questão toda é distinguir que tipo de relações sociais podem promover o desenvolvimento humano saudável e qual pode ameaçar as próprias condições ecológicas que tornam viável a civilização humana no longo prazo. Lamentavelmente, as relações capitalistas são do segundo tipo.
No capitalismo, o que regula o metabolismo da sociedade humana com o resto da natureza é o lucro, o impulso de acumulação ampliada que, cego em relação aos seus próprios custos ecológicos, desorganiza os grandes ciclos biogeoquímicos da biosfera. Essas “fissuras metabólicas”, como as chama o sociólogo Bellamy Foster, estressam os “limites planetários”, ameaçando a estabilidade do sistema Terra e colocando em risco as próprias condições materiais das quais dependem a reprodução da sociedade humana: o acúmulo de poluentes nas águas e no ar, a acidificação dos oceanos, a desorganização do ciclo bioquímico do nitrogênio e do enxofre (causada fundamentalmente pela agricultura industrial), as transformações drásticas no uso da água doce e da terra, a destruição acelerada de habitats e o processo, em curso, de extinção em massa, com eliminação irreversível de biodiversidade. A perturbação mais emergencial nesses limites planetários é a que envolve o ciclo do carbono, causada pela queima massiva de combustíveis fósseis para alimentar a economia capitalista global, resultando em aquecimento médio da temperatura na Terra e outras mudanças climáticas potencialmente catastróficas.
No capitalismo, o efeito agregado da ação humana no planeta é irracionalmente destrutivo e predatório. Quem paga a conta são as outras espécies, mas também a maioria das pessoas comuns que veem sua qualidade de vida deteriorada pela devastação ambiental. A empresa capitalista, obedecendo às leis do livre mercado, não hesita em despejar seus resíduos na água que bebemos ou no ar que respiramos, nem se preocupa se os efeitos colaterais de seus processos produtivos tornam a vida nas cidades um inferno.
Por si só, a economia capitalista não é capaz, portanto, de solucionar os problemas que criou. A mudança precisa ser compelida por uma força política ainda mais poderosa, que leve a humanidade a um caminho consciente de viabilidade ecológica. Essa força pode ser um ambientalismo da classe trabalhadora.
A questão ambiental é uma questão de classe
Já é lugar comum apontar, como fez o relatório da Oxfam de 2015 sobre “Extrema desigualdade de carbono”, que mais de 50% das emissões são de responsabilidade do consumo dos 10% mais ricos, enquanto a metade mais pobre da humanidade é responsável por apenas 10% das emissões.
No último relatório, lançado já em 2022, a constatação foi ainda mais chocante: os 20 maiores bilionários emitem juntos 8 mil vezes mais carbono do que o bilhão de pessoas mais pobres. Mesmo esses números subestimam a dimensão real da desigualdade: os super-ricos destroem o planeta não tanto pelo consumo, mas muito mais pela forma como lucram com a produção. É tão difícil parar as atividades ecologicamente destrutivas porque elas dão muito dinheiro, fazendo com que haja poderosos interesses materiais particulares que se contrapõem a qualquer solução racional que leve em conta o bem-estar comum: o que faz sentido na esfera pública não é o mesmo que faz sentido em termos privados.
Os efeitos ecológicos negativos da produção voltada ao lucro estão bem longe de serem igualitariamente distribuídos: são as comunidades mais pobres as primeiras afetadas. Ironicamente, justo aqueles que lucraram com a produção do problema e os que mais se beneficiam com a forma econômica que está na raiz da crise climática planetária, são os que têm mais recursos e poder para lidar com as consequências ou escapar de seus efeitos. Os bilionários podem, ao menos por um tempo, fugir para suas mansões nas montanhas, se refugiar em bunkers hiper tecnológicos – alguns até sonham em abandonar o planeta. Do outro lado, são os trabalhadores que sentem mais vivamente, nos próprios corpos, que não há “Planeta b”. São os que não têm riqueza nenhuma que mais estão vulneráveis às “catástrofes naturais” resultantes das mudanças climáticas.
Nesse mal negócio, os trabalhadores foram duplamente expropriados: primeiro, explorados no lugar de trabalho para gerar lucro para uma classe proprietária que pouco liga se os efeitos de seus processos produtivos são ecologicamente danosos, depois, roubados das próprias condições materiais de uma vida digna: uma biosfera equilibrada, com água limpa, ar puro, alimentos não envenenados e clima estável.
A crise ecológica e as mudanças climáticas ameaçam diretamente as condições de vida da classe trabalhadora. E, no entanto, no capitalismo, o problema é praticamente insolúvel, pois cada empresa está impelida a extrair a maior quantidade de lucro ou perecer na competição econômica. Como os lucros são privados, mas os custos são coletivos, seria necessário coordenação e planejamento em larga escala para escapar dessa armadilha. Para esse tipo de problema, não há saída individual, nem solução de mercado. Trata-se de um problema de ação coletiva, um agudo dilema social, em escala global.
O que fazer? A ameaça ecológica exige um plano de ação política. Nosso argumento é que o objetivo desse plano deve ser duplo: mitigar os efeitos destrutivos da dinâmica predatória de acumulação para, no mínimo, atrasar suas consequências mais devastadoras, enquanto, simultaneamente, buscamos elevar o poder coletivo daqueles que um dia poderão interromper essa dinâmica destrutiva de uma vez por todas. É preciso atuar desde agora para evitar o pior, e ao mesmo tempo aumentar as chances de vitória no futuro. Nem todos estão igualmente interessados em produzir mudanças nesse sentido.
A crise ambiental não é culpa da “humanidade”, assim em abstrato: ela não atinge a todos da mesma forma e há inclusive os que lucraram (e querem seguir lucrando) com as atividades econômicas que a produziram. Há, no entanto, um ator social que, caso seja capaz de se pôr em movimento, não apenas teria o poder suficiente para se opor aos interesses privados destrutivos, como teria vantagem material direta em fazê-lo: a classe trabalhadora.
Um plano ecológico da classe trabalhadora
Ativistas ambientais vêm dedicando enormes e desesperados esforços em tentar convencer o “mercado” que impedir o fim do mundo pode ser lucrativo também. Em termos práticos, essa abordagem se revelou um fracasso. Seu maior sucesso foi convencer a classe proprietária de que ela deveria parecer mais ecológica e gastar pequenas fortunas em propagandas para se pintar de verde. A locomotiva da acumulação predatória continuou, impávida e indiferente, na sua jornada acelerada em direção ao abismo.
Os verdadeiros interessados em impedir o desastre estão em outro lugar. São as pessoas comuns que ganham a vida trabalhando. Os que não lucram com a poluição, mas que a sentem nos pulmões. Os que têm que conviver diariamente com o rastro tóxico das consequências não intencionais do mercado, em suas comunidades ou locais de trabalho. Os que têm suas formas de vida inviabilizadas e os territórios em que habitam degradados pelos efeitos colaterais da produção capitalista. A massa trabalhadora dos que menos contribuem com o problema, mas mais sofrem com as consequências.
Sozinhos e isolados os trabalhadores parecem impotentes, e é certamente assim que cada um de nós se sente diante de um fenômeno de dimensões tão imensas quanto a crise ecológica e o aquecimento global. A boa notícia é que a história nos mostra que quando a classe trabalhadora se organiza é capaz de exercer tanto poder quanto os poderosos. O movimento dos trabalhadores foi a força mais democratizante da modernidade: conquistou o sufrágio universal, a redução da jornada de trabalho, a legislação trabalhista e a seguridade social. Nos últimos 150 anos, a classe trabalhadora organizada foi a principal representação dos interesses universais, da racionalidade pública, a força capaz de impor freios e limites aos interesses do dinheiro. Frente ao desafio da crise ecológica, pode mais uma vez exercer esse papel.
E, no entanto, o discurso ambientalista mais disseminado, ao focar na dimensão do consumo, tem dificuldade para dialogar com os trabalhadores. Não é difícil ver por que a mensagem “nós estamos destruindo o mundo com nosso consumo excessivo” não ressoa na experiência da maioria das pessoas. Para a maior parte das famílias trabalhadoras, não parece o caso que estejam consumindo de modo excessivo: ao contrário, muitas vezes suas necessidades materiais estão precariamente atendidas.
O discurso de que nós estamos destruindo o mundo não toca aqueles que mal conseguem pagar as contas. Para que possamos realmente avançar na prática, precisamos primeiro transicionar de uma “ecologia da austeridade”, segundo a qual as pessoas precisam apertar os cintos, para um “ambientalismo popular”, com apelo majoritário, segundo o qual podemos todos viver melhor. Se quisermos ser eficazes, é necessário deixar de lado um “ecologismo de estilo-de-vida”, individualista, para construir uma maioria política.
A direita ideológica entende muito bem como jogar esse jogo nefasto, e se esforça para apelar aos interesses materiais das famílias trabalhadoras contra as propostas ecológicas. A situação é perversa: querendo manter seus lucros, grandes proprietários investem em propaganda para convencer as famílias trabalhadoras de que as políticas ambientais significam perda de seus empregos e de sua renda já escassa. Desde a década de 1990 é comum encontrar, no interior dos Estados Unidos, carros com o adesivo: “Ou você ganha a vida trabalhando ou é um ambientalista”. Nos protestos de coletes amarelos da França, desencadeados por um imposto sobre combustível, era comum ouvir que as elites e os ambientalistas se preocupavam com o fim do mundo, mas que eles tinham que se preocupar com o fim do mês.
As mudanças climáticas representam, de fato, uma ameaça existencial à humanidade. Mas saber disso não é o suficiente, e se quisermos fazer algo efetivo a respeito não basta conhecimento teórico, boas intenções e apelos morais. É preciso identificar as preferências e demandas dos distintos setores sociais, mapear quais são os poderosos interesses que bloqueiam a ação necessária e constituir uma força coletiva real que possa se contrapor a eles. A partir dessa análise fria, a tarefa é elaborar uma visão de futuro, um programa de ação e uma estratégia política baseada nos interesses materiais da vasta maioria.
Na luta de classes para salvar o planeta, todas as armas são boas: greves, boicotes, sabotagens. Será preciso combinar táticas de ação direta, que interrompam processos produtivos, com ação indireta capaz de criar nova legislação, consolidar inovações institucionais e produzir uma outra hegemonia cultural. A ação coletiva ambiental passa tanto por bloqueios e protestos quanto pela produção de alternativas eleitorais viáveis. Nada será conquistado sem a formação de um movimento de massas diverso e combativo, capaz de pressionar as instituições desde fora, mas coordenando com iniciativas no interior das instituições, para disputar as direções das políticas de Estado. A seguir, esboçamos linhas gerais de um conteúdo programático que poderia ser executado mesmo por um governo de centro-esquerda que, não sendo de ruptura radical, poderia caminhar no sentido de um projeto social-ecológico. Essas indicações podem tanto inspirar a esquerda no poder como serem usadas como bandeiras de agitação para pressionar os governos.
Um programa de transição ecológica
Nossa própria experiência brasileira durante os governos do Lula é um bom começo: na primeira década dos anos 2000 no Brasil, tivemos registros de redução de emissão de CO2 associado com crescimento no pib e redução do desemprego. Mas agora é possível, e necessário, fazer ainda melhor.
Os entrevistados do relatório publicado em janeiro de 2022 pelo Fórum Econômico Mundial apontaram a mudança climática como o perigo número um, que pode fazer derreter não só as calotas polares, mas também o PIB global. Qualquer programa de desenvolvimento econômico deve, portanto, partir da exigência de neutralidade de carbono no médio prazo. O desafio está em garantir que o programa de transição ecológica aconteça, desde já, gerando renda, trabalho e vida boa para todos. O programa de um Ambientalismo Popular, listado de forma sumária abaixo, responde justamente a essa exigência.
Emprego verde para todos – Enfrentar a crise ecológica dará, sem dúvida, muito trabalho. Mas nas condições atuais do Brasil isso não é um problema, e pode até ser uma solução, tendo em vista a dramática situação social dos cerca de 12 milhões de desempregados que querem trabalhar, mas não encontram oportunidade no mercado. A prioridade número um de um novo governo de esquerda é combater o desemprego e isso pode ser feito justamente absorvendo mão de obra para as amplas transformações que a transição ecológica demanda. Para descarbonizar rapidamente precisamos reestruturar tudo: a maneira como vivemos em nossas cidades, como produzimos e como nos alimentamos.
A meta explícita de um projeto ecológico popular deve ser a criação de milhões de empregos sindicalizados e bem remunerados. Serão necessários braços e mentes para restaurar ecossistemas, para a reconversão industrial, para a atualização de uma rede inteligente de distribuição de eletricidade, na construção de uma nova infraestrutura de transporte público, na fabricação e instalação em larga escala de painéis solares e turbinas eólicas, na eletrificação massiva, na adaptação de edifícios comerciais e no levantamento em massa de habitações populares com novas técnicas de construção.
Do ponto de vista técnico, sabemos como aumentar a oferta de postos de trabalho: pelo crescimento do investimento público orientado à descarbonização e por gastos públicos em bens coletivos. Mas o Estado também pode ser diretamente um empregador, criando novas empresas públicas de tecnologia verde, por exemplo, ou com um programa de garantia de emprego para a juventude.
Desmatamento zero – A fronteira agrícola precisa parar de avançar. Isso não significa diminuir a produção agrícola, mas aumentar sua produtividade em termos de uso do solo. As ações pelo desmatamento zero podem servir como fonte de trabalho, empregando mão de obra local para o plantio, viabilização, fiscalização e utilização sustentável dos recursos de novas florestas.
Aqui se faz necessária a mão visível e pesada do Estado, restabelecendo sua capacidade de atuação coercitiva e operacionalizando os órgãos ambientais para garantir a fiscalização e punição aos criminosos ambientais, que hoje são responsáveis por 99% do desmatamento. Os povos indígenas têm atuado como verdadeiros guardiões da floresta, razão pela qual é do interesse de todos restabelecer e concluir o processo de demarcação de todas as terras indígenas no Brasil.
Revolução agroecológica – A agropecuária é a atividade que mais emite Gases do Efeito Estufa no Brasil e, portanto, se transformada, a que tem maior potencial de redução. A agropecuária gera muitos empregos e teve um crescimento rápido nas últimas décadas, mas é um dos setores mais vulneráveis aos efeitos da crise climática. Eliminar as formas mais predatórias, atrasadas, e, frequentemente ilegais, do uso do solo é uma forma de forçar a agropecuária brasileira a se tornar mais intensiva em conhecimento, com adoção de técnicas de baixa emissão de carbono que podem inclusive reforçar o potencial de exportação.
Efeitos ainda maiores podem ser alcançados apostando em um novo tipo de reforma agrária popular, de alta produtividade e cientificamente avançada, mas que quebre o tripé de monocultura, sementes industriais e agrotóxico. Com apoio estatal vigoroso em assistência técnica, financiamento barato e compras governamentais, é possível potencializar as iniciativas exitosas de agroecologia que já existem em assentamentos e em pequenas propriedades, colocando alimento saudável no prato dos trabalhadores brasileiros. Se o MST já conseguiu se tornar o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, o que será possível quando um governo aposte materialmente em dar escala a esse tipo de experiência? A conjugação do conhecimento camponês com a mais moderna técnica científica, reforçado por um aparato de financiamento diferenciado, distribuição e reforço a agroindústria cooperativa pode fazer do Brasil o campeão internacional de agricultura de baixo carbono e produtos orgânicos, contribuindo com o combate à fome e a oferta de trabalho digno no campo.
Política industrial ecológica – Muitas vezes a pauta ambiental é facilmente associada a um sentimento anti-industrial, como se a devastação da natureza fosse o resultado direto de uma mentalidade progressista que aposta no desenvolvimento tecnológico. Mas não precisa ser assim: a transição ecológica pode ser uma oportunidade única para reindustrializar o Brasil.
Mas isso não acontecerá espontaneamente. O único agente que pode coordenar, planejar e conduzir essas transformações é o setor público. Aí torna-se necessário a participação ativa da administração pública, na formulação e execução de políticas industriais para promover inovações técnicas e adoção em massa de tecnologias de energia renovável que já existem. Para produzir as mudanças urgentes na escala e no ritmo exigido, é o Estado que precisará estimular conscientemente o desenvolvimento: coordenando, estipulando o que é prioritário, criando mecanismos para financiar infraestrutura, incentivando pesquisa e desenvolvimento.
Transição energética – Apesar do Brasil contar majoritariamente com energias renováveis por conta das hidrelétricas, há um tremendo desperdício de oportunidades no setor energético. A transição energética para energias renováveis deve ser um caminho natural para um país como o Brasil, favorecido por um enorme potencial em expansão de energia fotovoltaica e eólica. O setor de energias renováveis têm o potencial de adicionar mais que o dobro de empregos que a média dos outros setores da economia. A geração de empregos verdes pode ser incentivada no setor de energias renováveis em toda sua cadeia, da produção à manutenção. Simultaneamente, é imprescindível garantir soberania energética para as comunidades e populações vulneráveis estabelecendo um programa nacional de democratização da geração distribuída.
Na maioria das grandes cidades, o setor de transportes é o principal emissor de gases. A descarbonização de ônibus e carros tem potencial para ser uma verdadeira revolução na mobilidade urbana, priorizando a redução das emissões ao passo que garante melhor qualidade de vida para os trabalhadores da cidade. Um transporte de baixa emissão deve estar associado à melhoria do transporte coletivo, atraindo passageiros. Trata-se também de rever, por meio do planejamento urbano, o próprio desenho de nossas cidades, diminuindo os deslocamentos e aproximando o local do emprego às residências dos trabalhadores.
Reforma Urbana Verde – Hoje no Brasil aproximadamente 85% da população vive nas áreas urbanas, que, por sua vez, ocupam apenas 0,6% do território nacional. Esse contexto de hiperconcentração humana cria um cenário artificial distante das condições originais do território e impede uma série de formas de uso do solo, obrigando a população a viver em uma estrutura urbanística cada vez mais densa e verticalizada que elimina espaços verdes, riachos, lagoas e paisagens, elevando o preço do metro quadrado, excluindo a população empobrecida e criando crônicos problemas de saneamento. Estamos cheios de megacidades com o déficit habitacional em seu limite e que relegam seus habitantes a moradias precárias.
Ainda hoje 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões não têm tratamento de esgoto em suas casas. Nesse setor, os municípios apresentam papel decisivo e precisam assumir o compromisso de efetivar seus planos municipais de saneamento básico, bem como de gestão integrada de resíduos sólidos.
Luxo público para todos – As coisas boas da vida, que mais geram satisfação humana e felicidade, tendem a emitir pouco carbono e são as mesmas há séculos: o tempo livre com a família e os amigos, aproveitar a companhia das pessoas, desfrutar de arte e cultura, fazer uma boa refeição com alimentos nutritivos e saudáveis, aprender novas ideias, admirar belas paisagens de praias, matas, serras, lagos e cachoeiras. O desafio coletivo é transformar os padrões de consumo e produção, priorizando bens públicos em detrimento da compra individual de lixo descartável. Saúde, educação e trabalho de cuidado são setores cruciais para uma boa vida de baixo carbono.
Uma boa vida para todos requer programas de transferências de renda. No Brasil tivemos o programa Bolsa Família, uma das experiências mais bem-sucedidas do mundo. Esse tipo de programa, centrado na mulher, não só promove uma reparação histórica, mas também otimiza o uso do recurso As mulheres, além de serem especialmente afetadas pelos efeitos da crise climática, são reconhecidamente os principais agentes de transformação em direção de um senso de justiça socioambiental.
Taxar os ricos – Se há, no entanto, um grupo que merece sim uma boa dose de austeridade é o 1% mais rico, os que vivem da propriedade e não do trabalho. Colocar os ricos no imposto de renda, como tem repetido Lula, faz todo sentido, e deve ser nosso ponto de partida inegociável. Em um momento que se faz urgentemente necessário recursos materiais para transformar a economia e impedir o desastre, faz sentido buscá-los no topo da pirâmide, justamente onde eles farão menos falta: tributar a distribuição de lucros e dividendos, grandes fortunas e heranças. O aumento da progressividade da tributação, e a ampliação da incidência de impostos sobre a classe proprietária, serve tanto para aumentar a receita para novos investimentos públicos ecológicos como inibir os gastos supérfluos em carbono (como jatinhos privados) e o consumo individual excessivo.
Os poluidores devem ser cada vez mais pagadores e o impacto negativo aos serviços ecossistêmicos e ao bem difuso que é o Meio Ambiente deve ser cada vez mais levado em conta nos processos de licenciamento e nas compensações ambientais. Isso deve ser enxergado de fato como um mecanismo gerador de receita para ser convertida em reestruturação de ecossistemas, fomento de programas de empregos verdes, pagamento de dívidas ecológicas para famílias em vulnerabilidade socioambitental.
Construir poder
Relatórios abstratos ou previsões apocalípticas não serão suficientes para produzir a mudança que precisamos, por mais crucial que seja entender a gravidade da situação. Sem uma estratégia concreta, capaz de despertar entusiasmo e esperança, o mero conhecimento teórico da magnitude da ameaça pode muito bem acabar sendo paralisador. E se a solução, como argumentamos, passa pelo engajamento em massa das pessoas comuns, precisamos oferecer uma imagem positiva de um futuro melhor, pelo qual vale a pena lutar, que seja ao mesmo tempo desejável e crível.
Para criar um mundo novo é preciso primeiro imaginá-lo. No fim das contas, o que propomos é um exercício coletivo de imaginação política, cujo resultado deve ser uma visão de longo prazo capaz de orientar e reforçar as diversas lutas imediatas. A vantagem de uma abordagem abrangente como a que sugerimos, que encarna uma ambição quase utópica, é a possibilidade de conectar várias lutas e movimentos, produzindo mobilizações sustentadas e persistentes, com o objetivo de acumular forças tanto nas eleições quanto nas ruas.
O que uma perspectiva estratégica nos traz é a consciência de que não há atalhos: precisamos construir poder. Em outras palavras, conhecimento e boas intenções, sem a articulação de uma base de apoio público ampla, de pouco adiantará. Para vencer, um projeto ecológico necessita de um apelo majoritário. Sua viabilidade política passa pela formação de uma coalizão de massas. Uma transição justa, até para que seja factível em termos pragmáticos, precisa materializar benefícios imediatos para a classe trabalhadora, que é a ampla maioria da população.
O desafio central nesse sentido é superar a tensão e as antigas desconfianças entre o mundo do trabalho e os grupos ambientalistas. O sindicalismo teve um papel histórico na imposição de limites ao capital e na expansão da oferta de bens públicos. Uma boa parte da legislação ambiental foi conquistada também pela pressão do trabalho organizado, a partir da consciência dos riscos sobre a saúde dos trabalhadores e suas famílias por parte de certos processos produtivos. A tarefa agora é conectar, no programa e no imaginário popular, uma economia política do pleno emprego e a transição ecológica: ligar energia limpa com moradia digna, descarbonização com oferta abundante de empregos de boa qualidade, preservação de áreas verdes com expansão da renda e do lazer.
Podemos encontrar um modelo desse tipo de aliança na própria história da esquerda brasileira, encarnado na figura de Chico Mendes. Um militante combativo da Amazônia profunda, Chico Mendes ganhou notoriedade internacional como um mártir da causa ecológica. Mas ele era antes de tudo, e assim se via, um sindicalista: presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xaperi e dirigente da Central Única dos Trabalhadores. Os “empates”, muitas vezes vitoriosos, que Chico e seus companheiros de luta organizaram para manter a floresta de pé, eram primeiramente uma mobilização classista, pela defesa das condições de vida dos trabalhadores extrativistas.
Chico também entendia bem a necessidade de construir coalizão com outros grupos que vivem na e da floresta, com povos indígenas (o que daria origem à Aliança dos Povos da Floresta), com organizações ambientalistas nacionais e internacionais, e com trabalhadores urbanos das fábricas: não por acaso, Chico Mendes foi fundador do pt, membro do primeiro diretório nacional do partido, e um aliado próximo de Lula, que esteve presente em seu velório em 1988. Os patrões assassinaram Chico Mendes, mas seu legado sobreviveu, e essa peculiar combinação de ação direta extraparlamentar, sabotando as tentativas de desmatamento, com atuação institucional partidária se revelou poderosa: menos de um ano após o assassinato, sua ideia de “Reservas extrativistas” – a “reforma agrária dos seringueiros”, inspirada pela demarcação de terras indígenas – foi incorporada à nova constituição.
Para que essa orientação estratégica tenha alguma chance de prosperar, precisamos de objetivos claros e uma delimitação simples de quem são nossos amigos e nossos inimigos. A tese fundamental é que a estabilização do clima e o enfrentamento à crise ecológica podem ser compatibilizados com elevação dos padrões de vida da maioria trabalhadora. O que defendemos aqui não é um projeto de ruptura revolucionária. Nada do que foi sugerido estaria fora da capacidade de atuação de um governo reformista conciliatório bem-intencionado. Uma proposta como essa busca, de fato, dividir politicamente o capital privado, isolando os setores mais atrasados e sujos, e atraindo parcelas mais tecnologicamente desenvolvidas e ecologicamente orientadas da iniciativa privada.
O fundamental, no entanto, é que essas reformas sirvam para reforçar a capacidade de organização e mobilização dos atores sociais que podem pressionar os governos na direção de uma crescente oferta de bens públicos, redução das desigualdades, planejamento democrático das atividades produtivas, redução do tempo de trabalho, ampliação da esfera de cuidados, desmercantilização das condições básicas de vida e socialização crescente do investimento. A criação de novos empregos verdes deve ir junto com o aumento da sindicalização e a reconversão industrial co-gestionada com os sindicatos de trabalhadores; a revolução agroecológica precisa potencializar os movimentos do campo; e a construção em massa de habitação social ecológica tem que ser feita em cooperação ativa com os movimentos urbanos de luta por moradia. A meta é sempre a mesma: aumentar o poder relativo dos trabalhadores frente aos patrões. Essa dinâmica pode então disparar um circuito virtuoso de mobilização: cada vitória abre espaço para planos mais ambiciosos, cada conquista aumenta a confiança de que é possível vencer e assim vai se reforçando a capacidade de organização dos que lutam.
Um ambientalismo popular vibrante e ousado pretende não apenas preservar a natureza, mas impulsionar a esperança e ampliar politicamente o horizonte de expectativas coletivo. O Brasil pode deixar de ser um pária, como é hoje sob Bolsonaro, para ser um modelo e uma inspiração global. Podemos não apenas vencer a crise climática, mas construir um mundo melhor no processo. Com suas vastas florestas e sua classe trabalhadora politicamente experimentada, o Brasil é o lugar privilegiado onde isso pode acontecer. As fichas estão todas nas nossas mãos. Um Brasil líder em agricultura de baixo carbono, polo mundial em pesquisa em bioeconomia e energias renováveis, vanguarda nos investimentos públicos para uma nova indústria ecológica, aliando combate à pobreza e desigualdade com descarbonização acelerada, tem tudo para ser um farol da humanidade, atraindo olhares de admiração e apoio de todos os povos do mundo.
A liderança moral do Brasil e a força de seu exemplo prático animariam a juventude e os movimentos de todos os países, inclusive para pressionar seus governos à ação mais ousada e maior colaboração internacional para uma transição justa. Essa contribuição pode marcar o ponto de virada histórico na relação da espécie humana com o resto da natureza. Aliando a mobilização de afetos com o pragmatismo da ciência e da técnica, é possível materializar pela ação política o projeto ambientalista popular. E, se podemos, é nossa obrigação histórica. O tempo está correndo. Mais do que um programa, aqui se encerra um convite urgente.